Um cenário complexo que pode interferir na democracia, ampliar a cidadania ou nos transformar em produtos e do qual pouco temos conhecimento foi descortinado pelos ativistas digitais Rodrigo Troian e Marcelo Branco na segunda etapa do Ciclo de Debates Mídia e Poder no Brasil, no dia 8 de agosto, em Caxias do Sul.
Realizadas na Câmara de Vereadores do município, as palestras com o tema Acesso à Internet- Democratização x Conspiração foram promovidas pelo Coletivo de Comunicação Alternativa, com apoio do Sindilimp. Representando o Coletivo, a jornalista Vera Mari Damian abriu o encontro, trazendo dados do Digital News Report 2017 (Relatório de Jornalismo Digital 2017), do Instituto Reuters para a Universidade de Oxford. A pesquisa mostrou uma ainda alta confiabilidade na mídia tradicional, pois 60% dos brasileiros confiavam e mais de 97% das famílias possuíam aparelho de TV, enquanto apenas uma em cada duas casas era conectada à internet, em 2015. “Mas, sabemos que tanto a televisão como a mídia impressa reduziram sua importância”, alertou Vera, mostrando dados da mesma pesquisa de que o Facebook já era utilizado por 57% dos entrevistados como fonte de notícias. “A pesquisa revelou que 70% dos entrevistados sabiam que há influência política e comercial indevida na mídia brasileira. Porém, se a grande mídia não é confiável, percebemos que na via digital é ainda mais fácil manipular informações e disseminar notícias falsas e mentirosas, utilizando fazendas de fake news, propagandas computacionais, sockpuppet, exércitos de troll e deep fakes que precisam ser combatidas”, advertiu, justificando a promoção do encontro para conscientizar sobre esses temas.
Cidadania digital para quem não tem
O palestrante Rodrigo Troian alertou para o fato e que 40% dos brasileiros não têm acesso à internet, principalmente em comunidades distantes e de baixa renda. Com instalação e conexão muito complicadas, manutenção difícil e faturamento baixo, essas áreas não interessam aos provedores comerciais. Assim, há diversos organismos que se preocupam com a inclusão digital para a democracia, como o Instituto Nupef (nupef.org.br), o portal Espectro (espectro.org.br) mantido por ela e diversas outras organizações pelo mundo. Rodrigo integra a Coolab, uma cooperativa laboratório de redes livres que agrega pessoas envolvidas com projetos de telecomunicação comunitária. Nesta rede de organizações, citou ainda a Associação Software Livre, MateHackers, Isoc e CNSIG.
Rodrigo é ativista de software livre, pesquisa e faz redes em malha por wifi utilizando roteadores de baixo custo – as chamadas redes livres. Para a plateia atenta, compartilhou a experiência de atuação junto a comunidades que utilizam a internet para telefonia, mensagem instantânea, mural de recados e acervo de conteúdos. “A própria comunidade aprende a fazer e manter as redes com conexão por enlaces de longa distância ou por satélite, com distribuição por roteadores caseiros, contando com voluntários”, explicou, contando que o trabalho já chegou a salvar vidas. Rodrigo participa da comunidade Latino Americana de Redes Livres, palestrando e organizando eventos em diferentes países da América do Sul e continua na trajetória para ampliar o alcance da internet. Em seus projetos está a pesquisa sobre autonomia de energia por placas solares e geração eólica e também sobre servidores de baixo consumo e custo.
Sem medo da liberdade
Co-idealizador do projeto Conexões Globais e diretor geral da Campus Party Brasil nos primeiros anos, Marcelo Branco discorreu sobre o tema “Da comunicação de massas à autocomunicação de multidões” destacando que a era da informação, com as sociedades em rede, conforme apontado pelo sociólogo espanhol Manuel Castells, na década de 90, é muito mais do que uma revolução tecnológica porque traz novos níveis de organização social, política e econômica (em rede) e revoluciona as relações humanas de forma acelerada. “Como consequência, há um empoderamento do indivíduo e um questionamento das organizações intermediárias, pois as relações passam a ser P2P (pessoa a pessoa). Assim, não é inovação tecnológica que provoca o maior impacto, mas a forma como os usuários apropriaram-se dela, gerando um ressignificado para a comunicação”, afirmou.
Neste momento histórico, elucidou Marcelo, observamos duas tendências contraditórias proporcionadas pelas tecnologias da informação e comunicação (TICs). A comunicação é descentralizada, porém mais informações são concentradas para fins de controle ou lucro. Essa concentração, com a finalidade de sustentar o poder acabou gerando mobilizações de contrapoder, como EZLN – Ya basta! (1994, Chiapas, México), Batalha de Seattle (1999), Fórum Social Mundial, marchas contra a guerra e anti-globalização, revoltas árabes (2011), #Spanishrevolution (2011), #OcuppyWallstreet, protestos no Brasil e na Turquia (2013). Conforme o ativista, esses movimentos caracterizaram-se pela organização por meio de indivíduos conectados em rede, sem intermediários, sem hierarquia e sem lideranças definidas, sendo as ideias o motor do processo. Foram protagonizadas por nativos digitais, sendo a brutalidade da repressão policial o combustível que as fez crescer. Todas nasceram de uma pauta inicial que se transformou depois em pautas múltiplas, num movimento antissistema. Marcelo enfatizou que, a partir de 2011, a internet deixou de ser uma ferramenta de comunicação das mobilizações e passou a ser o próprio corpo do movimento. Tudo isso levou a uma crise das instituições, com caráter mundial.
Neste contexto, Marcelo afirma que partidos, sindicatos (e outras instituições que organizam as pautas e as lutas de forma hierárquica e aprovadas por maioria) continuam sendo importantes, porém hoje há outras formas de organização. “Estamos vivendo um fosso entre as instituições constituídas e a forma de organização da juventude. As antigas organizações não podem ter a pretensão de englobar ou cooptar as novas. Terão que conviver, lado a lado, mas cada uma com a sua dinâmica própria”, concluiu.
Marcelo falou também sobre fake news, construção de discursos mediados pelas redes sociais e algoritmos. No final, citou Castells: “Temer a internet é temer a liberdade”.
Os palestrantes opinaram que a programação de computadores deveria integrar os currículos escolares e falaram sobre a influência da inteligência artificial (robôs) nos processos políticos. “As novas legislações têm que prever isso”, afirmou Marcelo Branco. Mas ele lembrou que a inteligência artificial pode ajudar a democracia, como é o caso da robô “Rosie” (@RosiedaSerenata), que identifica grandes desvios nos padrões de despesas dos deputados federais brasileiros, publica no Twitter e pede ajuda dos cidadãos para a verificação.
Abordando a “internet fora da caixa”, os ativistas destacaram que Google, Facebook e Twitter vendem as nossas informações pessoais para abastecer o mercado publicitário com informações customizadas. Rodrigo Troian deu exemplos de opções para fugir desse controle, como usar o Telegram para serviço de mensagens instantâneas (promete mais privacidade) e o DuckDuckGo como buscador (promete não rastrear dados).
O Ciclo de Debates Mídia e Poder no Brasil contou com o patrocínio do Sindiserv e Sindicato dos Bancários de Caxias do Sul e Região, apoio da Taufe & Tapia Advocacia Trabalhista, Sindicomerciários Caxias do Sul, Sinpro/Caxias, Sindilimp e Sindicato dos Jornalistas/RS. A organização foi do Coletivo de Comunicação Alternativa – grupo de profissionais caxienses da comunicação empenhado em promover outros olhares sobre temáticas sociais. A primeira etapa ocorreu em julho, quando o auditório da Câmara dos Vereadores lotou para ouvir os jornalistas Juremir Machado da Silva e Moisés Mendes.
Fotos: Gilmar Gomes